
ROQUE DE BRITO ALVES
Professor e Advogado
jodigitacao@hotmail.com
1 – Na doutrina penal contemporânea, surgiu a doutrina denominada “Direito Penal do Inimigo” – objeto já de rica bibliografia – com base na teoria de Gunther Jakobs, a partir de 1985, no sentido – em síntese – de não se conceder as garantias constitucionais materiais e formais (e processuais) do direito de defesa a certos tipos de criminosos (terroristas, membros de crime organizado, reincidentes, etc.), com uma legislação penal muito repressiva pois tais delinquentes não seriam considerados “cidadãos” e sim “inimigos” da Sociedade ou do Estado, representavam um perigo a ser eliminado. Sem dúvida, uma doutrina claramente inadmissível por si mesma por ser incompatível com o Direito Penal do Estado Democrático de Direito, liberal e humano, mais adequada a um Estado Policial ou a um regime ditatorial.
2 – Negando ou ao contrário de tal teoria, anti-democrática e inaceitável, entendemos que podemos apresentar ou proclamar, em estrito significado ou aspecto técnico-jurídico, o “Direito Penal Amigo” (denominação ou terminologia mais correta ou conveniente que “Direito Penal do Amigo”), como oposição a tal “Direito Penal do Inimigo”, fundamentando-se sobretudo em nossa atual legislação penal (o vigente Código Penal – a ser citado – e a legislação extravagante), com muitos textos que inequivocamente beneficiam, favorecem a autor de crime ou mesmo a já condenado por infração penal que continua como cidadão embora seja um delinquente ou mesmo um apenado. Tais textos benéficos (que passam a ser direitos por que estão na lei) constituem a estrutura ou conteúdo de um “Direito Penal Amigo” do criminoso ou do já condenado. Também, categóricos textos constitucionais vigentes que são evidentemente de garantismo penal, fundamentando ainda mais esta nossa tese de existência do “Direito Penal Amigo” mais benéfico para o criminoso que somente repressivo fazendo com que em nossa tese o Direito Penal não exista, não seja aplicado ou compreendido unicamente em termos de repressão.
3 – Comprovando esta nossa teoria, podemos citar, em síntese, sem a pretensão de esgotar a matéria, como exemplos principais de textos penais em vigor que, sob vários aspectos, beneficiam o autor de crime ou o condenado por infração penal os seguintes como constitutivos do “Direito Penal Amigo”:
1. Em geral, as penas restritivas de direitos (comumente intituladas “penas alternativas”) substituem as privativas de liberdade para as condenações não superiores a 4 (quatro) anos para crimes não violentos e para qualquer que seja a pena aplicada se o delito for culposo (por imprudência, negligência ou imperícia), tendo-se em vista o inc. I do art. 44 do Código Penal (com a redação da Lei 9714/1998), com as condições, ou restrições legais dos seus incs. II e III. Também, tais penas são as únicas aplicáveis sem condição alguma quando a pena privativa de liberdade for inferior a um (1) ano, conforme o seu art. 54.
2. A isenção de pena para o autor de qualquer crime (com as exceções do art. 183) contra o patrimônio se a sua vítima for cônjuge, ascendente ou descendente, seja qual for a natureza do parentesco, em um verdadeiro perdão judicial.
3. Outro exemplo de perdão judicial: o §1º, inc. I do art. 140 que trata do crime de injúria se o próprio ofendido, a vítima de tal delito por sua conduta reprovável provocou diretamente a injúria.
4. Ainda outra hipótese legal de perdão judicial (“O juiz poderá deixar de aplicar a pena”) no caso de homicídio culposo quando as conseqüências do fato criminoso venham a atingir o próprio autor de uma forma tão grave, dolorosa que tornem desnecessária a aplicação de sanção penal (§5º do art. 121 do CP), como nos exemplos de morte de cônjuge, de descendente ou ascendente, mutilação no próprio agente, etc. etc. Tal perdão judicial existirá igualmente no caso de lesão corporal culposa, tendo-se em vista o §8º do art. 129, e ainda receptação culposa (art. 180, §5º).
5. A redução dos prazos legais de prescrição (pela metade) se o criminoso era ao tempo de delito menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 70 (setenta) na data da sentença, ex. vi do art. 115 do CP, como um grande benefício legal que se aplica a qualquer delito, mesmo ao qualificado como hediondo.
6. Nos textos sobre os crimes contra a honra – calúnia, difamação e injúria, arts. 138, 139 e 140 – constata-se que as suas penas primitivas de liberdade por sua própria natureza ou quantidade nunca serão realmente executadas, beneficiando muito em verdade os ofensores da honra alheia, os condenados que nunca serão realmente recolhidos a uma penitenciária para o seu cumprimento perante o art. 44 e também o art. 54 do diploma penal vigente. Sem dúvida, nunca existiu no Brasil alguém preso cumprindo pena por tais delitos porém, ao contrário, crimes contra o patrimônio mesmo sendo de pequeno valor a coisa furtada – 40 reais, 32 reais, etc. –, “delitos de bagatela”, muitos dos seus agentes foram condenados ou cumpriram pena violando-se o atual “princípio de insignificância” como um dos fundamentais do Direito Penal moderno, o que ficou comprovado em decisões recentes do STF concessivas de habeas corpus (16 decisões) e absurdamente condenações que tinham sido mantidas em tribunais de justiça e até no Superior Tribunal de Justiça!
Em síntese, perante a nossa legislação as ofensas ao denominado patrimônio moral são punidas com penas ridículas, desproporcionais em relação às penas aplicáveis aos crimes contra o patrimônio avaliado em termos financeiros ou econômicos (o denominado patrimônio material), foram verdadeiramente fixadas para que nunca fossem cumpridas, executadas. Em tais hipóteses legais, inegavelmente os textos penais foram “amigos” demais.
7. Não será considerada para efeito de reincidência condenação anterior caso tenha decorrido um tempo superior a 5 (cinco) entre o cumprimento ou a extinção da pena e a infração penal posterior, com tal período de tempo o delinqüente deixa de ser reincidente – art.64, inc. I do CP – .
8. Outro texto “amigo” por si mesmo é o que se refere à reabilitação, o que se observa do art. 93 e seu parágrafo único pois se estende ou alcança não somente qualquer espécie de pena de sentença condenatória definitiva como irá atingir também os efeitos de tal condenação e com o condenado tendo ainda assegurado o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.
9. O critério maior para a aplicação de pena de multa determina o texto legal (art. 60 CP) deve ser a situação econômica do autor do crime.
10. A hipótese de abolição de crime na sucessão de leis penais no tempo quando ocorrerá a retroatividade da lei penal nova (posterior) que não mais considera o fato como criminoso (descriminalização do fato), extinguindo a punibilidade do agente (inc. III do art. 107 e art. 2º do CP) e eliminando qualquer efeito da condenação (colocação imediata em liberdade, reaquisição de qualquer direito que se perdeu com a sentença condenatória – político – , etc.).
11. A denominada “lei penal mais benigna” como lei posterior que se aplica ao autor de crime mesmo já condenado por favorecê-lo “de qualquer modo” (Par. Único do art. 2º), mesmo que o agente já tenha sido condenado por sentença definitiva – “sentença condenatória transitada em julgado” – , esteja já cumprindo pena em penitenciária.
O conceito de lei penal mais benigna é amplo pois abrange o crime, a pena e o processo como respectivamente nos exemplos de lei nova que qualifica o delito como “culposo” e não mais “doloso”, se a pena é atenuada, é reduzida ou, afinal, se o processo para a apuração do crime passa a ser “de rito sumário” e não mais “comum”, “ordinário”.
Retroatividade benéfica, aliás, como princípio constitucional (inc. XL do art. 5º CF/1988), como exceção do princípio geral da irretroatividade da lei penal.
12. Todas as autoridades devem respeitar a integridade física e moral de preso ou condenado (art. 38 CP) e não pode ser submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (CF/88, art. 5º, inc. III) como qualquer cidadão, não existindo mais penas cruéis (CF/88, art. 5º, al. “e” do inc. XLVII).
13. Direito das condenadas de permanecer com os filhos na penitenciária durante o período de amamentação – art. 5º, inc. L da CF/88.
14. O condenado por erro judiciário será indenizado pelo Estado e também o que ficar preso por tempo superior ao determinado na sentença – art. 5º, inc. LXXV da CF/1988 – .
15. Submissão do criminoso inimputável por anormalidade mental – art. 26 CP – a tratamento ambulatorial se for autor de delito punido com pena de detenção e não a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ex vi do art. 97. Ainda como outro texto penal “amigo” haverá a substituição da pena privativa de liberdade por medida de segurança para criminoso semi-imputável (par. único do art. 26) quando o condenado necessitar de um especial tratamento curativo (art. 98).
16. Como princípio constitucional que implica ou envolve matéria penal e processual penal o de que ninguém – e obviamente o autor de crime – será considerado culpado até a sentença condenatória definitiva (transitada em julgado), é a denominada “presunção de inocência” – inc. LVII do art. 5º da CF/88, além de outros princípios ou normas constitucionais que protegem o cidadão perante o poder de punir (“jus puniendi”) do Estado limitando tal poder; o da legalidade dos crimes, e das penas , o da amplitude de defesa, o do devido processo legal, o da individualização da pena, a personalidade da pena, a sua humanização, etc. e que são inerentes ao Direito Penal do Estado Democrático de Direito, em um incontestável garantismo constitucional penal.
Sem dúvida, existe uma “Carta Penal” em vários incisos do art. 5º de nossa Carta Magna, sendo também inegável que a nossa vigente Constituição é mais uma Constituição de Direitos do Cidadão que de Poderes do Estado, o que, em nossa compreensão, é característica maior do Estado Democrático de Direito.
4 – Não consideramos ou incluímos em nossa teoria em sentido amplo como exemplo do “Direito Penal Amigo” os textos sobre as justificativas (arts. 23, I, II e III, 24 e 25 do Código Penal) e as dirimentes penais (arts. 20 e seu §1º, 21, 22, 26, 27, o §1º do art. 28 do CP) assim como acerca das atenuantes comuns ou genéricas (art. 65) ou ainda as causas especiais de diminuição de pena (minorativas penais como, p. exemplo, o §1º do art. 121 do CP) de vários delitos, não houve a pretensão de ampliar muito o “Direito Penal Amigo”. Em verdade, tão somente certos aspectos especiais muito restritos em seu significado técnico – jurídico penal em relação a autor de crime ou mesmo a alguém já condenado, apenado (mesmo assim recebendo benefício que por estar em texto legal deixa de ser favor ou benefício passando a ser direito do delinquente ou condenado).
5 – Por outra parte, também a nossa teoria não abrangeu ou incluiu evidentemente os denominados “criminosos astutos ou afortunados” que fiquem impunes por várias razões extra jurídicas ou legais (por exemplo os que cometem os intitulados “crimes de colarinho branco”, geralmente delitos fraudulentos contra a ordem econômica, financeira ou tributária), impunidade que não se ajustaria ao aspecto doutrinário de nossa tese e aos textos legais que poderiam ser citados.
6 – Afinal se é inadmissível, por sua própria natureza, o denominado “Direito Penal do Inimigo”, entendemos ou sustentamos que existe claramente em seu essencial aspecto ou conteúdo técnico-jurídico um “Direito Penal Amigo” perante a nossa legislação penal vigente e nossos textos constitucionais plenos de garantismo penal, fazendo com que, com a nossa teoria, o Direito Penal não exista, não seja aplicado ou não seja compreendido somente em termos de repressão.