domingo, 13 de setembro de 2009

CONSCIÊNCIA COLETIVA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO SÓCIOJURÍDICA ACERCA DA LEI SECA E DA POSSÍVEL OBRIGATORIEDADE DO TESTE BAFÔMETRO.


Isaac de Luna Ribeiro: Mestre em Direito (UFPE), especialista em Ciência Política (UNICAP), professor de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade Maurício de Nassau e da pós-graduação da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE (ESA).
Uma imensa quantidade de filósofos, cientistas sociais e juristas têm, ao longo dos tempos, se debruçado na tarefa de construir teorias que se destinam a explicar o sentido, ou melhor, para usarmos o famoso jargão do Barão de Montesquieu, o Espírito das Leis[1]. Não há consenso entre as diversas abordagens, e como a brevidade do tempo não nos permite falar de todas, fiquemos com uma das mais conhecidas no campo das Ciências Sociais e Jurídicas - refiro-me à teoria sociológica de Émile Durkheim, para quem a lei é, na verdade, a sintetização normativa daquilo que chamou de “consciência coletiva”[2]; isto é: o que o legislador faz é tornar obrigatória, por força da coerção estatal, práticas, condutas e ações que, na verdade, já são aceitas amplamente pela sociedade como as melhores e mais desejadas; são, portanto, o padrão de convivência determinado pela simbiose das consciências individuais em uma única e onipotente consciência geral da sociedade, de base moral, exterior, anterior e irresistível para o indivíduo.
Essa tese representa, sumariamente, uma das questões que estão em pauta com a entrada em vigor da nova lei do transito, popularmente conhecida como lei seca[3].
Nessa perspectiva de alteração de costumes sociais (beber e dirigir) por força de lei é que se manifestou o ministro da saúde, José Gomes Temporão, acerca da lei seca, entendendo que essa representa um marco divisor na construção de uma nova consciência coletiva sobre a combinação entre o consumo de álcool e a direção de veículos: “Foi uma gigantesca contribuição do Congresso brasileiro com a saúde pública”[4].
O impacto social do novo ordenamento é realmente abrangente, atingindo os mais diversos setores da vida coletiva, a começar pela exposição da precariedade dos sistemas municipais de transporte público coletivo, que se mostrou insuficiente para atender o sujeito que, ao sair para curtir a noite, abre mão do seu veículo particular e fica a mercê do coletivo, bem como colocou em pauta a lisura e eficiências dos órgãos estatais responsáveis pela aplicação da lei, já que sua eficácia e resultados dependem de agentes estatais “incorruptíveis” no desempenho das suas funções, sob pena de se tornar em mera moeda de negociações entre motoristas alcoolizados e servidores públicos ávidos por uma “propinazinha” para complementar o orçamento familiar, o que, digamos, não está tão distante do que ocorre em algumas situações cotidianas, mesmo não sendo esta, em absoluto, a regra nem a prática da maioria dos agentes.
Não é de se duvidar, também, que alterações inquestionavelmente positivas podem ser apontadas nas emergências dos hospitais públicos, que registram queda na taxa de atendimentos com vítimas fatais envolvidas em acidentes de transito, e também no revigoramento do até então decadente serviço de táxis.
A secura da lei, que é absolutamente intolerante com o consumo de álcool por condutores de veículos automotores, nos coloca, na realidade, diante de velhos dilemas teóricos, ideológicos e jurídicos, dos quais podemos destacar a questão das liberdades positivas (Estado social: intervencionista e garantidor de direitos) e liberdades negativas (Estado Liberal: não intervencionista, ampliando o âmbito de escolhas privadas do indivíduo), e, de mais a mais, da abrangência e do papel do próprio Estado frente à autonomia de escolha dos cidadãos.
Nada obstante está a discussão acerca da aplicabilidade da lei penal. O estatuto em comento é representativo de uma tendência contemporânea de criação de tipos penais ditos de “perigo abstrato”, ou seja, grosso modo, aqueles que se destinam às condutas que não precisam provocar efetivamente o dano, sendo suficiente para a sua incriminação que possam vir a colocar em risco a paz, a saúde ou a segurança pública ou individual – os delitos de Quadrilha ou Bando (art. 288) e Entrega de Filho Menor a Pessoa Inidônea (art. 245) podem ser tidos como exemplos dessa modalidade delitiva.
O debate acerca da obrigatoriedade do teste do bafômetro passa por esse viés, já que, especificamente, o que estamos a discutir é se o direito individual de não produzir prova contra si mesmo se sobrepõem ao direito coletivo de não ser vítima de uma morte violenta no transito provocada por um motorista alcoolizado.
Por derradeiro, para sermos coerentes com o marco teórico proposto no início, cabe salientar que o que estamos vivenciando no debate atual nos remete ao paradigma durkheimeano acerca das consciências individuais e coletivas, já que, no fundo, e diante da abundância incontestável dos números divulgados pela Polícia Rodoviária Federal, Ministério da Saúde e Secretarias de Segurança públicas de vários Estados relacionando os acidentes e tragédias no transito ao consumo de álcool, há um sentimento, mesmo que insipiente, na consciência coletiva da sociedade, de que algo precisa ser feito, mesmo que esse “algo” represente uma reflexão sobre as liberdades e direitos individuas pleiteadas e defendidas, legitimamente, pelos chamados liberais[5].
Outra vez, portanto, o que está em jogo é a questão do Estado e da sua abrangência nas nossas vidas, escolhas e consciências. Para usarmos os termos de um outro “mostro” das Ciências Sociais, Thomas Hobbes, “É o medo da morte violenta que nos leva a abrir mão da nossa liberdade irrestrita e confiar todo o poder ao soberano”[6]. No caso em debate, o medo da morte violenta no transito, provocada pelos excessos de alguns condutores acostumados a, impunemente, com perdão do trocadilho, “beber, cair, dirigir”, pode ter produzido no seio social uma consciência coletiva favorável a positivação, pelo Estado-soberano interventor, da lei seca do transito, mesmo que em prejuízo das liberdades e consciências individuais – ou seja, estamos diante do mesmo dilema dos contratualistas dos séculos XVII e XVIII (Hobbes, Locke, Rousseau), qual seja: as vantagens e desvantagens da criação de um pacto ou contrato social que consiste, sumariamente, em abrir mão da ampla liberdade em troca da segurança garantida pelo Leviatã. Aliás, não seria essa mesma a essência da liberdade erguida pela modernidade iluminista, que consistiria simplesmente na autorização de se fazer tudo aquilo permitido pela lei?
Havendo algum sentido no que se disse até aqui, poderiamos então sugerir que quanto mais a lei espelhe uma consciência coletiva representativa de uma moral social predominantemente desejada, tanto melhor será para vida em sociedade – pelo menos em uma perspectiva durkheimeana.
Esse pode ser, dentre muitos outros possíveis, um bom início para o debate!

[1] MONTESQUIEU, Charles-Louis Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2007.
[2] DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[3] LEI nº 11.705, DE 19 JUNHO DE 2008. Conversão da Medida Provisória nº 415, de 2008. Altera a Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que ‘institui o Código de Trânsito Brasileiro’, e a Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4o do art. 220 da Constituição Federal, para inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor, e dá outras providências.
[5] 86% aprovam lei seca.... Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/ brasil/interna/0,,OI2991865-EI998,00.html&gt> . Acesso em: 06 de julho de 2008.
[6] HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2005.

Um comentário:

  1. Nem precisa dizer que eu adoreii, Eu sou suspeita, acompanho todos os seu trabalhos.

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