domingo, 15 de março de 2009

NA POLÊMICA DO ABORTO DOS GÊMEOS TODOS TEM(1)RAZÃO


Isaac de Luna Ribeiro: Mestre em Direito; professor de Direito Penal da Faculdade Maurício de Nassau e advogado da Browne Advocacia Consultoria.

O caso do aborto, na gravidez de gêmeos de uma menina de nove anos violentada pelo padrasto no interior de Pernambuco (art. 213 c/c 224, 'a' e 226, II, CP), transformou-se em manchete nacional e, a reboque, pôs lenha no acalorado debate acerca do tema, travado, sobretudo, entre leigos e religiosos no Brasil.

A situação recoloca no centro das discussões antigos dualismos, ao que parece, ainda não superados: Estado x Igreja, direito x moral, fé x razão (ou ciência) e, pela própria natureza das questões que a envolve, bem como as pessoas e instituições nele envolvidas, a solução, seja ela qual for, estará sempre muito próximo do imponderável.

É certo que com o advento da Modernidade, fruto, dentre outras coisas, dos ideais iluministas e racionalistas, à Igreja foi legado um papel restrito a vida eminente privada dos indivíduos, não mais atuando como agente determinante nas questões de ordem pública, prerrogativa essa exclusiva do Estado. Também é verdade que, em grande parte por influência dos escritos de Immanuel Kant (2), ficou posta a separação entre o direito e moral, sendo esta uma conduta de fórum íntimo que depende da concordância de cada um, e aquele uma imposição geral, exterior (bilateral atributiva), e da qual independe, formalmente, a concordância interna dos sujeitos sociais.

Questões recentes, tais como os debates no Congresso Nacional e no STF acerca da manipulação de embriões e células troncos para fins científicos colocaram também em xeque aquela inabalável confiança weberiana (3) de que, no Estado moderno, as decisões seriam tomadas cada vez mais com base em argumentos racionais, afastadas, portanto, as “nuances” da fé, ou, latu sensu, das questões metafísicas.

O midiático embate teológico-científico que se desenvolve em torno do drama da menor pernambucana traz consigo todas as questões sumariamente expostas, insolúveis a séculos e, para usar o jargão de um pensador emblemático desse dualismo, Karl Marx (4), ora travado abertamente, ora nos bastidores da sociedade.

O fato é que, do lugar de onde falam, todos tem razão! Ou, no dizer da professora Marilena Chauí (5), todos os discursos são competentes! Vejamos:

1. Os juristas que se manifestaram acerca do caso tem razão quando afirmam que, independentemente de haver ou não risco de morte para a gestante (art. 128, I - Aborto necessário), não resta dúvida de que a gravidez foi fruto de um estupro presumido (art. 213 em combinação com o art. 224, ‘a’, do Código Penal), hipótese para a qual as leis penais brasileiras prevêem o chamado “aborto terapêutico”, estando o mesmo amparado elo art. 128, II, do Estatuto Penal vigente. Logo, não há qualquer tipo de ilegalidade no procedimento abortivo praticado.

2. A equipe de profissionais da área de saúde que procedeu aos exames e análises do quadro clínico, todos necessários para averiguar o nível do risco da gravidez, também tem razão ao afirmar que as condições atípicas da gestação tinham uma grande probabilidade de, a luz dos conhecimentos científicos da medicina (6), desenvolver situações de elevado risco para a vida da gestante. Aqui, também, não há ilegalidade no ato nem desconformidade com a ética profissional, já que a conduta foi precedida de pareceres de diversos profissionais envolvidos, contou com a aquiescência das mais diversas entidades, sociedades e instituições de representação médica, além de, de mais a mais, ser o dever mesmo profissional do médico salvar a vida em risco eminente

3. Por fim, a Igreja, ao pronunciar-se por diversos dos seus interlocutores oficiais, de forma contrária ao aborto, também tem razão, já que do ponto de vista teológico-cristão a vida deve ser defendida acima de qualquer outra coisa, cabendo unicamente a Deus dela dispor. Os religiosos que se pronunciaram sobre o caso, portanto, subordinados ao mandamento teológico supra e falando em nome da Igreja, foram igualmente coerentes nas suas falas.

Diante do que foi até aqui colocado, tornar-se-ia incoerente concluir alguma coisa; contudo determinadas considerações podem ser acrescentadas ao debate:

a) A primeira é que estamos muito longe de concretizar o postulado moderno da separação entre razão e moral – se é que essa empreitada é mesmo possível;

b) Em segundo lugar que a Igreja, nesse caso específico a católica, nada mais fez do que reafirmar a sua tese (ou dogma) de defesa incondicional da vida, e não respeitá-la no seu posicionamento equivaleria a violação do direito constitucional de liberdade de expressão da fé religiosa (Art. 5º, VI, CF);

c) A terceira é conseqüência direta da anterior, ou seja, por esse prisma a lista de excomunhão da Igreja deverá ser consideravelmente ampliada (assassinos, instigadores do suicídio, defensores da eutanásia, dentre outros)

d) Ademais, que os profissionais médicos envolvidos agiram dentro dos limites éticos e legais da sua profissão e as únicas considerações a que podem ser submetidos são de caráter moral, unicamente por parte das religiões as quais estão vinculados;

e) Também que a exploração midiática do caso expõe, de forma sensacionalista, a vítima, a família, os profissionais envolvidos e os religiosos, mas ao mesmo tempo possibilita o debate social sobre o tema: afinal, como certa feita já questionou o filósofo, de que lado você está – dos mandamentos da fé ou dos postulados da razão?

Enfim, muito pode ser ainda dito sobre esse caso, e uma boa diretriz para o debate pode está, também, dentre muitos outros, em um livro que retrata uma troca de cartas entre o cardeal do vaticano Carlo Maria Martini e o escritor e filósofo Umberto Eco, intitulado Em que crêem os que não Crêem, onde se discute os fundamentos teológicos e racionais da ética humana (7).

Por enquanto, o máximo que pode ser dito sem se incorrer em intolerâncias ou autoritarismos é que, cada um dos envolvidos na polêmica, das posições onde se encontram, está certo, ou, dito de outra forma, é coerente com o papel social que desenvolve e com os postulados éticos do subsistema a que está vinculado (8).

Afinal, como deve ser entendido o aborto: crime ou direito, pecado ou misericórdia?

NOTAS:

(1) Em conformidade com a reforma ortográfica da língua portuguesa

(2) KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros escritos. Martins Claret. São Paulo, 2003.

(3) WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília, UNB. 1999

(4) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista (Comentado por Chico Alencar). Rio de Janeiro: Gramond, 1998.

(5) CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2003

(6) Nesse particular, o conceito de conhecimento científico a que se refere o texto é aquele sugerido por Karl Popper, ou seja: probabilístico, demonstrável e falível, para citar apenas os aspectos mais relevantes no caso em exame.

(7) ECO Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em Que Crêem Os Que Não Crêem?. Rio de Janeiro: Record, 2001. 160 páginas.

(8) Para aprofundamento nesse assunto ver: LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

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